CONSTRUIR SOBRE A ROCHA
Gestão e vida religiosa
09.Maio.2023

O tema
proposto para a reflexão é gestão e vida religiosa. O texto escolhido é o de Mt
7, 21-29. A opção por essa perícope se justifica por concluir um discurso de
Jesus, que se apresenta como norma da comunidade cristã e por tratar-se de
colocar em prática o que foi proferido pelo Mestre, apresentando assim o
fundamento da vitalidade do grupo nascente. O tema da gestão se justifica
também, pois sabemos que estamos vivendo uma época de mudanças aceleradas; o
tempo parece cada vez mais curto e nossa capacidade de acompanhar as
transformações são sempre deficientes e defasadas. Essa realidade nos atinge
individualmente, mas muito mais institucionalmente, porque a capacidade de
adaptar-se é muito mais morosa e difícil para as instituições. Uma das saídas
para lidar com a escassez do tempo e a necessidade de responder com rapidez e
eficiência tem sido o apelo aos mecanismos de gestão, de modo especial no mundo
corporativo. O ambiente da
vida
consagrada que, por motivos históricos (aqui não vêm ao caso),
institucionalizou-se para além do que deveria. Cada vez mais o discurso da
gestão, reengenharia, análise institucional, qualidade total entre outros
modelos administrativos torna-se pauta do cotidiano das instituições religiosas
e parece ser a porta de saída das crises que as assolam. Escolhemos iniciar a
analisando o texto e em seguida apresentar a temática da gestão, uma vez que
são realidades diferentes com lógica e perspectivas próprias.
Reflexão
de Mt 7,21-29
É preciso
situar a perícope no contexto maior do Evangelho de Mateus. O evangelista e sua
comunidade encontram-se em um momento extremamente difícil e conflituoso.
Necessitam afirmar a sua identidade frente ao judaísmo formativo1 que está se
estruturando e se reorganizando a partir do grupo dos fariseus, os quais
possuem a pretensão de serem os únicos e verdadeiros continuadores do projeto
de Deus. Mateus constrói seu Evangelho à semelhança do Deuteronômio e faz de
Jesus o novo Moisés, aquele que vem dar a verdadeira interpretação da Lei. Aos
cinco discursos de Moisés, Mateus articula o ensinamento de Jesus em cinco
discursos2, nos quais inaugura a nova
lei e o novo
povo de Deus, identificado com a comunidade cristã, a qual passa a ser o
verdadeiro Israel, fiel ao projeto do Pai e chamado a uma nova vida. O primeiro
discurso (Mt 5-7) possui um caráter programático e revela de modo definitivo as
exigências éticas do novo mundo anunciado, através do radicalismo de suas
exigências: o amor ao irmão que é mais importante do que a pureza do culto,
cortar o mal pela raiz, ser coerente e consequente com o que se professa (sim,
sim e não, não), quebrar o modelo de vingança (oferecer a outra face), amor aos
inimigos, oração como intimidade com o Pai e não como formalismo, abandonar-se
à providência de Deus( olhai os lírios do campo...), não julgar o
outro é a
regra de ouro (fazer aos outros o que queremos para nós mesmos).
Esse
radicalismo é a resposta adequada à radical novidade do Reino de Deus no
confronto com o nosso mundo. Não se trata de fazer retoques, de preencher
lacunas, de corrigir aqui e ali, de apresentar projetos reformistas, mas de
fazer desaparecer a lógica do ser humano voltado sobre si mesmo, para que torne
a sua vida conforme o agir do Pai. Oferecer a outra face, amar aos inimigos,
renunciar a vingança contra os adversários, significa quebrar um ritmo de
reações repetitivas do passado e introduzir nas relações humanas um fator de
novidade, capaz de explodir o círculo vicioso do mundo velho e antecipar o
novo.
O texto que
olharemos mais de perto finaliza o primeiro dos discursos de Jesus em Mateus,
conhecido como “Sermão da montanha”.
Fazer a Palavra
Esse texto de
Mateus aponta duas atitudes opostas ante o ensinamento de Jesus, os que são
obedientes à Palavra e os que são rebeldes a ela. A estrutura do texto nos
ajuda a compreender a profundidade de sua mensagem. Ele pode ser dividido em
quatro pequenas partes, unidas entre si pela temática comum e pelo verbo poieo
(fazer, praticar). Esse é o verbo mais importante
desta perícope. Em torno do seu significado está a chave de interpretação do
texto. Ele aparece nos vv. 21, 22, 24 e 26. O versículo 21 apresenta a questão:
21a “não é quem me diz Senhor, Senhor, que
entrará no reino dos céus”. 21b “mas
só quem faz a vontade do meu Pai celeste”.
O termo
senhor (kyrie) é
expressão de uso litúrgico com a qual a Igreja manifestava sua fé no Cristo
glorificado; daí se conclui que os destinatários do texto são os crentes, a
comunidade unida em oração. Mateus os adverte a não se utilizarem da
proclamação litúrgica como motivo de segurança, porque a liturgia sem prática
não conduz ao Reino de Deus.
Os vv. 22-23
estão estruturados como paralelismo antitético, os quais exprimem de modo
límpido os motivos da censura de Jesus à comunidade:
A
v.22a ... me
dirão Senhor, Senhor!
B
v.22b em teu
nome: profetizamos, expulsamos demônios, fizemos milagres.
A'
v.23a ... jamais
vos conheci.
B' v.23b responderei:
não agistes segundo a vontade de Deus.
Nesses dois versículos
aparece claramente o que não é a vontade de Deus e é por esse motivo que Jesus
rejeita a proclamação de fé da comunidade. Gritam: Senhor, Senhor, apoiando
assim a sua fé em manifestações carismáticas que, por sinal, eram amplamente
atestadas na comunidade cristã primitiva e também atual. Jesus responde com um
lacônico “jamais vos conheci” no v.23a, proclamação do v.22a. Para a alegação
de dons extraordinários em nome de Jesus em 22b, a resposta Dele está em 23b:
“não agistes segundo a vontade de Deus”. A palavra grega que traduz essa
expressão é anomia: desobediência
à lei de Deus. Essa palavra aparece em Mateus neste texto e no discurso
escatológico em contraposição ao amor (Mt 24,12); ou seja, a atitude que identifica
o cristão é a prática do amor, como está expresso em Mt 7,12, o dom que nos
coloca em sintonia com o Reino de Deus.
Os vv. 24-27
apresentam o resultado de duas atitudes assumidas diante do ensinamento de
Jesus. O texto está estruturado novamente na forma de paralelismo, agora entrelaçado
num paralelismo antitético e sinonímico, de modo a mostrar que uma mesma
atitude aparente leva a resultados opostos. Vejamos:
A
v.24 - escuta –
prática – sensato – construiu – rocha
B
v.25 – chuva –
torrente – vento – casa – não caiu
A'
v.26 – escuta –
não prática – insensato – construiu – areia
B'
v.27 – chuva –
torrente – vento – casa – caiu
Acréscimo:
Grande sua ruína.
O paralelo
entre os vv. 24-27 mostra que ambos têm atitude de escuta e ambos constroem,
porém o diferencial está no modo como se constrói. Um é sábio e outro tolo. O
primeiro fundamenta sua obra na rocha, em base segura, que é a obediência à
Palavra ouvida. O segundo, não obediente, portanto não praticante da Palavra,
fundamenta sua obra em base frágil, areia.
Os dois estão
sujeitos às mesmas adversidades, o efeito final é que faz a diferença: uma obra
permanece e a outra termina arruinada. Além de caracterizar duas naturezas de
discipulado, a parábola interpela a comunidade e o cristão a confrontar-se com
um e outro construtor e tomar consciência daquilo que cada um é. O apelo é de
passar de apenas ouvintes da Palavra para fazedores da Palavra.
v. 28 ...
multidão extasiada...
v. 29 ...
Jesus autoridade...
A multidão
não está acostumada ao modo de Jesus falar porque Ele fala por si mesmo, por
experiência e não se apoiando na tradição. Expõe-se pessoalmente e o seu
discurso é pleno do amor operativo e por isso tem consistência. O mesmo não
acontece com os mestres da lei que repetem impessoalmente as doutrinas de
mestres do passado.
Saber
utilizar
A gestão
surge dentro e a partir do modo de produção capitalista com o intuito de ganhar
tempo, otimizar as energias e a mão-de-obra, em vista do ganho de produção.
Seus rudimentos aparecem já na revolução industrial com Adam Smith, embora do
ponto de vista científico tenha sido desenvolvida por Taylor. Resumidamente,
apresenta os seguintes passos: análise da tarefa, planejar um único e melhor
meio par desempenhá-la, selecionar trabalhadores físico e psiquicamente capazes
para a atividade, treinar e desenvolver os trabalhadores, interação e
cooperação entre gestores e trabalhadores uma clara separação entre eles e
pagar incentivos pelos aumentos da produtividade em função da produção.
Evidentemente que ao longo do tempo a compreensão da gestão foi evoluindo e
deslocando-se da ênfase na produção para o destaque nas pessoas, depois para os
processos de interação, para a vantagem competitiva e ultimamente para a
questão da sociedade do conhecimento. Essa última apresenta alguns princípios
que caracterizam a gestão profissional: capacitar pessoas para atuar em
conjunto, efetivar forças e reduzir fraquezas, integrar a cultura local, ter
compromisso com metas comuns e valores compartilhados, aprender a fazer e a
desenvolver o conhecimento, ancorarse na comunicação e na responsabilidade,
criar e utilizar seus indicadores de desempenho e buscar resultados múltiplos.
Essas características foram tomadas de Afonso Murad que por sua vez citava
Peter Drucker. O próprio Murad define gestão como sendo “Competência para
coordenar processos e liderar pessoas, em vista de resultados a fim de realizar
com eficácia a missão (negócio) de um grupo organizado”.
Isso
demonstra que é possível e desejável que nos apropriemos das metodologias de
gestão, porém não podemos esquecer que a gestão está voltada ao mundo
corporativo, institucional e ao mundo dos negócios. A Vida Religiosa é também
possuidora de instituições e ela própria é instituída. No entanto, sua razão de
ser não está na instituição, no negócio, mas no seguimento e prática do
ensinamento de Jesus. Torna-se evidente que a Vida Religiosa possui em seu gene
de origem, ambiente totalmente diverso da gestão. A pergunta que devemos nos
fazer é se é possível assumir os métodos de gestão sem perder o fundamento
daquilo que caracteriza o nosso modo de ser: o projeto de Jesus. Até que ponto
o negócio que mantemos é suporte institucional para a prática concreta do amor
ou se torna o centro da instituição da Vida Religiosa? Pergunta que Murad lança
em sua reflexão e que deve ajudar a cada um de nós a discernir profundamente em
qual base construímos nossa casa, nossa vida. Os mecanismos de gestão poderão
nos ser úteis, mas é preciso lembrar que, antes de tudo, somos e existimos para
pôr em prática o amor operacionalizado em Jesus. Sem essa base, poderemos até
ter sucesso, mas seremos vazios.
Pe. Álvaro Macagnan, sds